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'Radis' recorda mobilização para construção do SUS

 

                                 Mobilização para construção do SUS



A realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, foi a ponte para o que viria a ser debatido, a partir do ano seguinte, na Assembleia Constituinte, em relação à saúde no Brasil. Como porta-voz da Reforma Sanitária, o Programa Radis trouxe a  cobertura de todas as discussões, em um tempo em que não havia internet e redes sociais para levar a informação instantaneamente — as publicações de Radis garantiam que os debates que definiriam os rumos da saúde no Brasil chegassem às cinco regiões brasileiras.

Nas páginas das publicações editadas pelo Programa Radis, desde 1982, o registro de um Brasil antes do SUS e das mobilizações que levaram à Constituição de 1988. “Com a ousadia de pensar a saúde para além da noção de ausência de doenças, o movimento da Reforma Sanitária nasceu no contexto de luta contra a ditadura para propor mudanças não somente na área da saúde.” 
 
Quem ainda não era nascido ou era criança no início da década de 1980 talvez não imagine os graves problemas que o Brasil enfrentava nos últimos anos da ditadura militar. Era um contexto de dificuldade econômica, impulsionada por crises mundiais, como a do petróleo, e o fim do “milagre brasileiro” ainda na década de 1970, que acarretou o aumento da dívida externa. Inflação nas alturas e altas taxas de desemprego, aliadas às condições precárias de vida e à falta de um modelo efetivo para garantir a saúde da população, eram marcas de um contexto que viu nascer os ideais de um movimento conhecido como Reforma Sanitária.

Com a ousadia de pensar a saúde para além da noção de ausência de doenças, o movimento da Reforma Sanitária nasceu no contexto de luta contra a ditadura para propor mudanças não somente na área da saúde, mas que implicariam em melhoria nas condições de vida da população como um todo. O embrião do Programa Radis surgiu neste período e foi testemunha ativa de todo o processo que levou à criação do Sistema Único de Saúde (SUS), na Constituição de 1988. Até chegar aos debates que possibilitaram a afirmação da saúde como um direito universal, um longo caminho foi percorrido.

Em julho de 1982, nascia Radis — Reunião, Análise e Difusão de Informação sobre Saúde. A combinação dessas palavras significou o início de um projeto idealizado pelo economista e sanitarista Sergio Goes de Paula, professor da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp/Fiocruz). O objetivo inicial do primeiro coordenador do Programa Radis era levar informação em saúde a profissionais e ex-alunos dos cursos de ensino descentralizado da escola. No entanto, diante das mobilizações cada vez mais crescentes pelo direito à saúde, o público para o projeto também foi se expandindo, como forma de chegar a lugares e pessoas que não tinham acesso a publicações com esta temática. Naquela época ainda não existia a Revista Radis — que só foi lançada em 2002, quando o programa completou 20 anos. Porém, as outras publicações do projeto — Súmula, Dados, Tema e Proposta, com perfis variados — tinham o propósito de fornecer, debater e analisar informações sobre saúde.

Logo no ano inicial do programa, foram confirmados os primeiros casos de aids em São Paulo e a Fiocruz lançou as primeiras doses da vacina nacional contra o sarampo. O destaque do primeiro número da Súmula, publicação editada pelo Programa Radis desde 1982, foi o sucesso da campanha de vacinação contra a poliomielite, em que o número de casos da doença havia caído drasticamente a partir das campanhas realizadas nos dois anos anteriores. A publicação tinha o objetivo de fazer um acompanhamento crítico das notícias sobre saúde que circulavam na imprensa. No primeiro número da Tema, também de julho de 1982, o debate era a proposta de municipalização, que pretendia descentralizar as ações de saúde, pois o sistema de saúde até então no país era marcado pelo favorecimento de grandes centros urbanos, enquanto a assistência às localidades menores era prejudicada. “Como garantir saúde em todos os cantos do Brasil?” — era a pergunta que o campo da Saúde se fazia neste momento e que ecoava nas páginas das publicações de Radis.

Crise econômica e saúde

Antes do nascimento do SUS, as políticas de saúde eram pensadas mais em termos de recuperação do que em prevenção de doenças. Para os trabalhadores formais, existia o Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) — saúde e previdência andavam juntos. Para o restante da população, nenhuma garantia. A maior parte dos previdenciários era pobre. Quanto à classe média, era comum que se pagasse para ter acesso aos recursos de saúde, como consultas, exames e cirurgias. Para os que não possuíam carteira assinada, era possível recorrer às poucas unidades públicas de saúde, como hospitais universitários ou pequenos centros de saúde, ou instituições filantrópicas.

Em sua primeira edição, de julho de 1982, a revista Dados, que tinha como característica analisar informações epidemiológicas, trouxe registros sobre as condições econômicas, como custo de vida, salário mínimo e alimentação básica, e incluía também índices sobre mortalidade por causas e mortalidade infantil. Estes temas estiveram muito presentes nas edições de 1983 e 1984, pois era um contexto de desemprego em massa e em que a inflação chegou a 200%. Em um período em que a saúde da população brasileira piorava devido aos problemas econômicos e à precarização das condições de vida, as páginas de Dados dedicavam-se a registrar informações sobre a mortalidade no Brasil — e a piora nos indicadores apontava para a necessidade de mudanças.

A relação entre saúde e crise econômica também era estampada, com frequência, nas páginas da Súmula. Na edição de número 10, de abril de 1984, o alerta: “Crise compromete as metas do saneamento básico”, mostrando que o cenário econômico prejudicava os investimentos governamentais no setor de água e esgoto. O desemprego e a fome foram também retratados ao longo das edições: em novembro de 1985, a Súmula nº 13 trazia o título “O genocídio no Nordeste” para falar da seca que atingia a região. Alimentação e saúde foram anunciadas como as grandes dificuldades em 1984: com a crise econômica, os mais prejudicados eram os trabalhadores com salários mais baixos, que precisavam reduzir gastos, levando à piora nas condições de moradia e transporte.

Entre o novo e o velho

Enquanto o Brasil era apresentado à novidade das vacinas, como a produção nacional do imunizante contra o sarampo, fabricado pela Fiocruz, a população ainda precisava lidar com antigos problemas de saúde, devido às condições precárias de moradia e saneamento. Em junho de 1986, a Súmula destacava o título “A epidemia esperada” para falar que o surto da doença transmitida pelo mosquito Aedes aegypti não surpreendeu os especialistas da área da saúde pública — há 36 anos, a dengue já era uma velha conhecida do Brasil e das páginas de Radis.

Pela primeira vez, em 1984, houve a campanha de multivacinação infantil para poliomielite, tríplice (coqueluche, difteria e tétano) e sarampo, como registrou a Súmula nº 10. Outras questões que preocupavam eram o uso abusivo de antibióticos no país (Súmula nº 8, junho de 1983), o aumento de partos realizados por cesariana (Súmula nº 6, abril de 1983), os dados elevados de infecção hospitalar e como o Ministério da Saúde lançou portaria para que os hospitais constituíssem comissões preventivas (Súmula nº 8, junho de 83) e como o câncer que mais atingia os homens e o segundo a impactar as mulheres era o de pele, em pesquisa realizada no período de 1976 a 1980.

Nas grandes cidades, a pobreza e as péssimas condições sanitárias levavam à proliferação de endemias, não apenas de doenças relacionadas ao desenvolvimento urbano, mas de velhas conhecidas dos sanitaristas brasileiros, desde os tempos de Oswaldo Cruz e Carlos Chagas — como a doença de Chagas e a leishmaniose visceral, o que era retratado na Súmula nº 13, de novembro de 1985, com o curioso título “Colonização do espaço urbano pelos parasitas”. Os dados sobre mortalidade infantil ainda continuavam alarmantes em 1985, quando o Fundo das Nações Unidas para Infância (Unicef) atribuía o problema da desnutrição à recessão econômica.

SUS: do sonho às lutas para sua criação

A realização da 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, foi a ponte para o que viria a ser debatido, a partir do ano seguinte, na Assembleia Constituinte, em relação à saúde no Brasil. Como porta-voz da Reforma Sanitária, o Programa Radis trouxe a  cobertura de todas as discussões, em um tempo em que não havia internet e redes sociais para levar a informação instantaneamente — as publicações de Radis garantiam que os debates que definiriam os rumos da saúde no Brasil chegassem às cinco regiões brasileiras.

A Tema, publicação voltada para o aprofundamento dos assuntos relacionados à saúde, fez ampla análise e divulgação sobre a 8ª Conferência na edição de número 7, de agosto de 1986, explicando não apenas o contexto das conferências anteriores, mas ressaltando a importância daquela que foi a primeira realizada no período de transição democrática, em que foram lançados os ideais do que seria o Sistema Único de Saúde. “A Oitava Conferência tornou-se uma pré-Constituinte da Saúde”, registrou em suas páginas. Já na Súmula nº 14, de junho de 1986, Sergio Arouca, nessa época já presidente da Fiocruz, escreveu uma carta aos leitores, analisando os problemas de saúde que ocupavam os jornais, como dengue, malária, infecção hospitalar e falta de atendimento médico, e o que era esperado com a Oitava.

Com o início da Assembleia Constituinte, em 1987, também surgiu uma nova publicação do Programa Radis: o Jornal Proposta, que trazia como subtítulo “o Jornal da Reforma Sanitária”. Eram edições voltadas para a cobertura das discussões que levaram à Constituição de 1988 e para acompanhar as mudanças que estavam acontecendo no sistema de saúde, como a implantação do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (o SUDS, um sistema anterior ao SUS, que começou a universalizar a assistência, não voltada apenas aos trabalhadores da economia formal). Nas páginas das publicações, era possível conhecer as expectativas que tomavam conta do setor, mas também as preocupações, como a questão do subfinanciamento, que já era debatido, principalmente em razão da crise econômica que se prolongava.

Outro tema que passou a ser acompanhado por Radis e que dá o tom das mudanças que foram trazidas pelo SUS é a questão do comércio e do controle da qualidade do sangue. Essa foi uma pauta debatida durante a Constituinte e que ganhou repercussão pública, principalmente com o aumento dos casos de aids, pois a transfusão de sangue foi apontada como a segunda principal causa de transmissão do HIV.

Antes do SUS, o sangue podia ser comercializado, o que reforçava um entendimento da saúde como “mercadoria” e não como “direito”: não havia uma regulação específica nem controle de qualidade na transfusão de sangue, o que passou a ser discutido após o aparecimento dos casos de HIV. Com a decisão aprovada na Constituinte de estatização da rede de coleta, pesquisa, tratamento e transfusão de sangue, foi o início de um caminho para que não houvesse mais risco de contaminação. O assunto foi amplamente divulgado em várias edições da Súmula, em 1988, e com uma edição especial na Tema (nº 10, junho de 1988).

A aids também passou a ser assunto frequente nas publicações de Radis. Em um tempo em que as informações sobre a doença ainda não eram conhecidas da população, a Tema não só detalhou questões básicas como transmissão, como trouxe tudo o que se sabia até então sobre prevenção e tratamento dos infectados. Já a publicação Dados trouxe os índices da doença no mundo, nas Américas e no Brasil, sendo que no país a faixa etária mais afetada era a de 30 a 34 anos e a transmissão sexual e por sangue contaminado eram as formas mais comuns de disseminação do vírus.

Além da aids, a dengue se somava a um quadro grave de epidemias na saúde pública do Brasil, como resultado do descaso com a população durante o regime militar e o modelo de desenvolvimento das cidades. Em 1988, a preocupação era com a dengue hemorrágica e o risco de um novo surto como ocorrido nos anos anteriores. Com os rumos definidos para a saúde, a partir da Constituinte, e a criação do SUS, a preocupação mais presente foi a questão do financiamento para a implementação das mudanças, visto que o repasse de verbas para os estados e municípios continuava escasso e tornou-se o grande desafio para os rumos da nova década que estava por vir.












Reforma Sanitária nas páginas da Radis

"A proposta da Reforma Sanitária Brasileira representa, por um lado, a indignação contra as precárias condições de saúde, o descaso acumulado, a mercantilização do setor, a incompetência e o atraso e, por outro, a possibilidade de existência de uma viabilidade técnica e uma possibilidade política de enfrentar o problema.

(...)

A Reforma Sanitária é parte do conjunto de uma mudança social. Esse conjunto pressupõe a recuperação da cidadania, o seu pleno exercício, o direito de expressão, de livre manifestação e organização, sempre no sentido deste país se firmar como uma nação de cidadãos.”
(Sergio Arouca, Tema, nº 11, novembro de 1988)


Fonte: Informe Ensp (24/05/2022)

      Link da matéria: https://portal.fiocruz.br/noticia/radis-recorda-mobilizacao-para-construcao-do-sus

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