Nas últimas décadas, mudanças importantes no padrão de transmissão da leishmaniose visceral humana têm sido observadas por especialistas e agentes de vigilância em saúde. Predominante em ambientes silvestres e rurais na década de 1980, a doença tem se tornado cada vez mais urbana. Entre os fatores que favorecem a transmissão nas grandes cidades é a alta capacidade de adaptação dos flebotomíneos, em especial da espécie Lutzomyia longipalpis, vetor principal da doença no Brasil.
Atualmente, são registrados casos autóctones em cerca de 1,6 mil municípios brasileiros, incluindo centros urbanos, como Rio de Janeiro (RJ), Palmas (TO) e Fortaleza (CE). “Além da resistência a oscilações de temperatura, estudos mostram que as fêmeas de Lutzomyia longipalpis não possuem preferência na busca pela alimentação, podendo se alimentar do sangue de roedores, cães e de seres humanos. O controle do inseto vetor é um desafio”, ressalta Elizabeth Rangel, vice-diretora de Pesquisa e Coleções Biológicas do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz), pesquisadora do Laboratório Interdisciplinar de Vigilância Entomológica em Diptera e Hemiptera, coordenadora do Laboratório de Referência Nacional para o Ministério da Saúde e Regional para a Organização Pan-Americana da Saúde em Vigilância Entomológica: Taxonomia e Ecologia de Vetores das Leishmanioses e coordenadora da Rede Fiocruz de Laboratórios de Leishmanioses.
Segundo o último boletim divulgado pelo Ministério da Saúde, foram registrados 4,1 mil casos da doença no Brasil em 2017. Em todo o país, o número de mortes chegou a 327 neste período. Classificada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como doença negligenciada, a leishmaniose visceral ocorre em 76 países. O Brasil é um dos mais afetados do mundo e concentra mais de 90% das notificações do continente.
A entomologista do IOC explica que o surgimento de casos de leishmaniose visceral em humanos numa determinada região está relacionado a uma conjunção de fatores. “A presença do inseto vetor somada à introdução de um hospedeiro, como um cão infectado com o protozoário Leishmania chagasi, causador da doença no Brasil, e uma população vulnerável à picada do flebotomíneo é o contexto mais comum para novas infecções em humanos”, destaca Elizabeth. Em áreas urbanas, cães infectados, que podem ou não apresentar sintomas, são a principal fonte de infecção para os insetos e, consequentemente, para os humanos.
Flebotomíneos: insetos transmissores
O parasito L. chagasi é transmitido pela picada de fêmeas de flebotomíneos infectadas, em especial, das espécies Lutzomyia longipalpis e Lutzomyia cruzi. Também conhecidos como ‘mosquito-palha’, ‘tatuquira’, ‘cangalhinha’ e birigui, os insetos são pequenos e apresentam coloração amarelada.
De acordo com o chefe do Laboratório de Bioquímica e Fisiologia de Insetos do IOC, Fernando Genta, os hábitos e características dos flebotomíneos podem variar de acordo com a espécie. “Para se reproduzir, os insetos utilizam locais úmidos, com sombra e matéria orgânica, principalmente de origem vegetal, como folhas e frutos, além de fezes de animais”, explica. Pedras, fendas de rochas, buracos no solo, currais, chiqueiros, tocas de animais, base ou tronco de árvores são exemplos de potenciais criadouros.
O ciclo de vida passa por quatro fases: ovo, larva, pupa e adulto (com asas). A duração do ciclo evolutivo pode variar, em média, entre 30 e 45 dias, dependendo da espécie e da influência das condições de temperatura, umidade e disponibilidade de alimento. As fêmeas podem colocar de 40 a 100 ovos, variando de acordo com a espécie. Em geral, realizam apenas uma oviposição ao longo da vida: estudos apontam que, em condições experimentais, os insetos adultos podem viver entre 20 e 30 dias. Bioquímico do IOC, Genta atua no desenvolvimento de estudos de enzimas digestivas de insetos vetores, incluindo os flebotomíneos, e sua relação com a capacidade vetorial e estabelecimento da infecção por parasitas. “Duas espécies de flebotomíneos podem ser criadas com sucesso em laboratório, Lutzomyia longipalpis e Phlebotomus papatasi. A grande dificuldade na criação de colônias desses insetos em laboratório limita o desenvolvimento de estudos sobre a fisiologia, a transmissão de parasitos e a sensibilidade aos inseticidas”, pondera.
Em relação ao comportamento, os adultos se concentram nos locais próximos aos criadouros e em anexos peridomiciliares, principalmente em abrigos de animais domésticos, como o cão, e de criação, como galinhas e porcos. Eles possuem capacidade reduzida de voo, com dispersão média em torno de 400 metros.
Durante o dia, os flebotomíneos permanecem abrigados, apresentando maior atividade do início da noite até a madrugada. Nesse período, as fêmeas saem em busca de alimentação, preferencialmente do sangue de animais, incluindo seres humanos. O Brasil está entre os países que concentram o maior número de espécies de flebotomíneo em todo o mundo.
Formas de prevenção
O combate ao inseto transmissor é a principal forma de prevenção da leishmaniose visceral. “O manejo ambiental para afastar os flebotomíneos envolve a limpeza de quintais e terrenos. É necessário retirar folhas, frutos, fezes de animais e outros entulhos que favorecem a umidade do solo, onde o vetor se desenvolve. Também é fundamental descartar adequadamente o lixo orgânico para impedir o desenvolvimento das larvas do inseto”, explica Elizabeth. Uma vez que animais podem atrair o flebotomíneo para perto das casas, é recomendado manter os abrigos dos animais domésticos limpos e distantes do domicílio.
Medidas de proteção individual, como o uso de repelentes, telas e mosquiteiros também podem ser adotadas nas áreas com transmissão da doença. A aplicação de inseticida nas paredes de domicílios e abrigos de animais só é indicada em municípios que apresentam grande número de casos ou em períodos de surto de leishmaniose visceral.
Para os cães, está disponível para comercialização uma coleira impregnada com inseticida (deltametrina), que tem a função de espantar os insetos transmissores. O dispositivo, que também atua como medida de proteção individual, tem duração de 4 a 6 meses.
Atualmente, existe uma vacina antileishmaniose visceral canina em comercialização no Brasil. No entanto, pela falta de estudos que comprovem a efetividade da vacina na redução da incidência da doença em humanos, o seu uso está restrito à proteção individual dos cães e não como uma ferramenta de saúde pública.
Fonte: Fiocruz
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