Uma pesquisa do Instituto Oswaldo Cruz (IOC/Fiocruz) e do Instituto Pasteur, na França, avaliou a possibilidade de estabelecimento do ciclo silvestre do chikungunya no Brasil, o que poderia dificultar o controle do vírus e inviabilizar sua erradicação do território. Atualmente, a doença ocorre em áreas urbanas no país, tendo o Aedes aegypti como vetor. Divulgado na revista científica Plos Neglected Tropical Diseases, o trabalho mostra que, durante testes em laboratório, mosquitos silvestres Haemagogus leucocelaenuse Aedes terrens coletados no estado do Rio de Janeiro – espécies encontradas em grande parte das florestas do continente americano – são capazes de transmitir o vírus. Ainda é necessário verificar se os macacos brasileiros são capazes de atuar como reservatórios do chikungunya, a exemplo do que ocorre no ciclo de transmissão silvestre da febre amarela, vírus que também é originário da África.
Na continente africano, onde o chikungunya foi identificado pela primeira vez, em 1952, os ciclos silvestre e urbano da doença podem ocorrer simultaneamente. Nas áreas urbanas, os insetos A. aegypti se infectam ao sugar o sangue de pessoas doentes e transmitem a infecção para outros indivíduos. Já nas florestas africanas, diferentes espécies de mosquitos silvestres contraem o vírus ao picar macacos doentes e espalham a infecção para outros animais. Nesse caso, a infecção humana pode ocorrer de forma acidental, quando pessoas entram na mata e são picadas por vetores infectados.
“Hoje, o ciclo de transmissão do chikungunya no Brasil ocorre em espaços urbanos, envolvendo o mosquito A. aegypti. Os nossos resultados indicam que os mosquitos silvestres estudados apresentam as condições para que o vírus possa estabelecer um ciclo de transmissão silvestre nas Américas. Esse cenário apresentaria um grave problema de saúde pública, uma vez que a infecção se tornaria mais difícil de controlar”, afirma o entomologista Ricardo Lourenço de Oliveira, chefe do Laboratório de Mosquitos Transmissores de Hematozoários do IOC e líder do estudo. “É fundamental incorporar o chikungunya em uma rotina de vigilância envolvendo o ambiente silvestre”, destaca o pesquisador.
Ricardo ressalta que não existem dados científicos publicados sobre a suscetibilidade dos macacos das Américas ao vírus chikungunya. “Sabemos que os macacos, na África, integram o ciclo silvestre do vírus. Porém, há diferenças importantes entre as espécies de primatas que habitam os dois continentes. Por isso, são necessárias investigações complementares, que testem a susceptibilidade de infecção dos primatas do nosso continente e seu potencial como amplificadores do vírus para infectar mosquitos”, sintetiza. O pesquisador ressalta que não está descartada a possibilidade de que outros grupos de vertebrados também possam integrar o ciclo de transmissão silvestre da doença.
Resultados comprovam potencial de transmissão
Para avaliar a possibilidade de transmissão silvestre, os pesquisadores realizaram testes com mosquitos H. leucocelaenus e A. terrens coletados no estado do Rio de Janeiro. Os insetos foram alimentados com amostras de sangue contendo as duas linhagens do vírus chikungunya que circulam no Brasil, chamadas de leste-centro-sul africana e asiática.
Os ensaios revelaram alto potencial dos mosquitos para disseminar o agravo: sete dias após ingerir o sangue infectado com a linhagem africana, mais de 60% dos insetos apresentaram partículas virais infectivas – capazes de provocar a infecção – na saliva. Para alguns mosquitos H. leucocelaenus, a presença do vírus infectivo na saliva se deu de forma ainda mais acelerada: apenas três dias após a ingestão do sangue infectado. No caso da linhagem asiática, os pesquisadores ofereceram sangue com uma dose menor do vírus aos insetos. Mesmo assim, aproximadamente 40% dos H. leucocelaenus e 5% dos A. terrens apresentaram partículas virais infectivas na saliva após sete dias.
“O fato de que esses mosquitos são competentes para transmissão do chikungunya nos diz que eles poderiam transmitir o vírus de pessoas infectadas para animais nas florestas, possibilitando o início de um ciclo silvestre da doença”, afirma a pesquisadora Anna-Bella Failloux, chefe da Unidade de Arboviroses e Mosquitos Vetores do Instituto Pasteur e coautora do estudo. Ela ressalta que, apesar de envolver uma série de desafios, a realização de pesquisas sobre a transmissão silvestre de vírus é uma peça-chave para o enfrentamento das doenças emergentes. “É necessário estimular a investigação sobre esses ciclos. No entanto, os mosquitos silvestres não se desenvolvem bem em colônias em laboratório. Outra dificuldade frequente é que muitos vírus silvestres crescem mal em culturas in vitro. Por isso, pouco se sabe sobre esse assunto”, comenta.
Febre amarela, exemplo da passagem urbano-silvestre
De acordo com os cientistas, a passagem de um vírus do ciclo urbano para o silvestre foi um fenômeno observado com o vírus da febre amarela no passado. Trazida da África para as Américas, a doença circulou inicialmente nas cidades, provocando grandes epidemias. No começo do século 20, com o sucesso das campanhas de erradicação do A. aegypti, o agravo deixou de ser transmitido nas áreas urbanas do continente. No entanto, uma vez que a circulação viral já tinha se estabelecido nas florestas – com a disseminação entre mosquitos silvestres, incluindo o H. leucocelaenus, e macacos –, epidemias periódicas continuaram ocorrendo nas áreas próximas de matas.
“Nas regiões onde ocorre o ciclo silvestre, a vacinação se tornou a única ferramenta eficaz para prevenir os casos de febre amarela. Mas esse não é ainda um instrumento disponível contra a chikungunya”, alerta Ricardo, lembrando que as medidas usadas para controle do A. aegypti não são aplicáveis aos vetores das florestas. “Os mosquitos silvestres, como H. leucocelaenus e A. terrens, colocam seus ovos nos ocos de árvores, que acumulam água em períodos de chuva. Esse tipo de criadouro não pode ser eliminado ou vedado como fazemos com pneus, pratos de planta, caixas d’água e outros criadouros do A. aegypti em ambiente urbano. Se iniciar um ciclo silvestre, a chikungunya pode se tornar uma doença de muito difícil controle no nosso país”, completa.
Rotina de vigilância é a principal recomendação
Os autores do estudo defendem que sejam organizados programas de vigilância para a chikungunya que incluam uma rotina de avaliação de macacos e mosquitos, de modo similar ao que é preconizado para a febre amarela. Assim, seria possível determinar se a transmissão do vírus em ambientes silvestres já está ocorrendo e monitorar essa possibilidade no futuro. Em locais próximos de matas, os pesquisadores recomendam redobrar a atenção em relação a casos humanos de chikungunya, uma vez que, como o estudo apontou, os mosquitos silvestres estão aptos a transmitir o vírus. “É fundamental combater a doença, intensificando as medidas de controle do A. aegypti, especialmente nas áreas próximas às florestas, para prevenir o estabelecimento do vírus nas regiões de matas”, enfatiza Ricardo.
De acordo com os cientistas, as ações de vigilância devem incluir a coleta de amostras de macacos e mosquitos para avaliar a ocorrência de infecção natural. Além disso, a pesquisa de anticorpos – moléculas produzidas pelo organismo em resposta à infecção e que demonstram ter havido contato prévio com o vírus – deve ser realizada nos primatas e em outros animais vertebrados. “No caso da febre amarela, algumas espécies de macacos, como os bugios, são mais suscetíveis à infecção, e o seu adoecimento é um alerta para a circulação da doença – por isso são conhecidos como ‘sentinelas’. Em relação à chikungunya, ainda é preciso identificar quais os animais mais importantes para o monitoramento”, pondera o pesquisador.
Estudos anteriores
Em estudos anteriores, publicados em abril de 2014, o mesmo grupo de cientistas apontou, de forma pioneira, a possibilidade de transmissão do chikungunya nas áreas urbanas do Brasil e de outros países das Américas. O estudo que confirmou a alta competência vetorial dos mosquitos A. aegyptie A. albopictus de dez países do continente americano foi publicado no Journal of Virology. Os primeiros casos de infecção por chikungunya no território brasileiro foram confirmados pelo Ministério da Saúde poucos meses após a publicação do estudo, em setembro de 2014.
Segundo o Ministério da Saúde, do início do ano até 16 de março, foram registrados quase 13 mil casos de chikungunya no Brasil. O número é 44% menor do que o observado no mesmo período do ano passado, quando ocorreram mais de 23 mil notificações. A queda na média nacional não significa que a doença retrocedeu em todo o país. No Rio de Janeiro, houve 6,7 mil ocorrências de chikungunya em 2019 contra 5,8 mil em 2018, o que representa alta de 14%. Com maior número do país, o estado notificou duas vezes mais casos de chikungunya do que dengue este ano. Altos índices da infecção também foram observados em Tocantins, Pará e Acre.
Os sintomas da chikungunya são semelhantes aos da dengue, com febre e manchas vermelhas na pele, além de forte dor nas articulações, muitas vezes acompanhada de inchaço, entre outras manifestações. Além da possibilidade de formas graves, a chikungunya preocupa pelo risco de desenvolvimento de quadros crônicos: em alguns pacientes, a dor articular permanece por meses ou anos, causando limitações de movimentos.
Fonte: Fiocruz
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